No desespero daquela queda que o levará ao único fim inevitável, Rigel sente duas mãos, bem diferentes, a segurá-lo por momentos. Estagnados, em margens opostas do abismo que enfrentava o seu pequeno pé-de-amora, os deuses que o haviam criado fitavam-se sem se mexer, esperando o momento em que um deles soltasse a planta, permitindo assim a sua sobrevivência. De um lado, uma figura feminina, cabelos longos e cristalinos, como se por ela descessem suavemente milhares de flocos de neve, nenhum igual, todos perfeitamente desenhados; as mãos frias mas carinhosas, espelhavam aquele ser, o Gelo personificado, magnificamente poderoso e belo; a tez tinha um toque dourado, misturado com o rosa de uma orquídea real, sensual e macio, por onde os dedos não se cansam de percorrer. De outro, um deus magnânimo, de horizontes mais quentes. O cabelo pareciam chamas de uma fogueira de Julho, que calmamente faz crepitar as Flores da Escócia, cujo estalido era, nas noites quentes dos santos, o prenúncio de amor correspondido nos corações dos mais novos; o olhar transmitia a força do oceano que o acompanhava sempre, num tumulto apaziguado há muito dentro dele, onde, quem o olhasse atentamente, encontraria a paz nos dias mais conflituosos. Tentando conter a paixão louca que poderia naquele momento matar o que tinham cultivado, tentam a todo o custo segurar, sensatamente, o elo que os unia, que simbolizava o tempo em que conseguiram unir almas e corpos, numa simbiose invejada por muitos, temida por tantos outros. O Tempo, inimigo cruel das divindades, afastou-os, esperando na separação um esquecimento gradual e a perda das memórias conjuntas, enfraquecendo-os, guardando para si a Felicidade que poderiam criar. Munch, que tanto desafiava Rigel, aliou-se ao Tempo para aprisionar um dos deuses, embrutecendo-o, e apagando da sua mente os momentos em que a perfeição era possível, e atingível, todos os dias. Remetida ao seu palácio feito de sombras e luz, a deusa foi mantida em cativeiro, comunicando com a metade que a completava, através dos sonhos da planta que os unia. Cansada, nos poucos dias em que tudo era mais forte do que a força que a caracterizava, decidia abrir os olhos e deixar de sonhar, de comunicar, de aguentar o barco que andava há demasiado tempo à deriva, sem chegar a si, sem chegar ao rumo, afundando cada dia um bocadinho mais no lodo da monotonia e do comodismo da vitória de Munch e do Tempo. Abrir os olhos agora seria fatal para a pequena planta…
Assim que o Sol se levantou, o Jardineiro e os filhos, com o rádio a pilhas que os acompanhava sempre, prepararam-se para voltar àquele jardim, que deixaram para irem de férias. Secretamente, desejavam que, ao regressar, todas plantas tivessem sobrevivido aos dias sozinhos. Abrem a porta de ferro meio enferrujado, com motivos árabes, por onde passa rapidamente um gato preto, luzidio, que tão bem conheciam. Afagaram-no por momentos, era o porteiro fiel das visitas àquele paraíso. A uns passos da entrada, encontram uma lagartixa num pranto invulgar, mágico, como se alguém lhe tivesse tocado o lado mais negro dos seus sentimentos, dando-lhe formas de expressar a dor nunca antes vistas. Ao lado, em paz, caída no chão, uma planta linda, com uma flor de uma beleza rara, deixara de sentir o vento e o sol, o calor daqueles dias de Outono, e já não temia o frio do Inverno que se aproximava. Rigel morrera.
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