2009/06/30

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Citações

"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar."
Bertold Brecht

Ficção? III

Aquele pátio de centro comercial menor era bem iluminado. Com certeza, como acontece nos filmes, alguma das três câmaras dispostas nos bancos poderiam reconhecer a face daqueles que, no banco de trás, lhe tiravam a liberdade.
-- Agora vão vocês e eu fico com ela, depois vamos nós.
A voz mantinha a firmeza daquele que não podia deixar cair a máscara de agressor, sob pena de ver o seu lado humano vulnerável perante as vítimas que, naquele momento, deviam temê-lo apenas. Mafalda acedeu à ordem, e saiu, com o que, atrás de si, mantinha o boné enterrado, como um cão que ladra, ladra na penumbra, mas sem coragem de morder.
-- Não olhes para mim!
-- Fica descansado, não olharei. Mas como queres fazer?
-- Mostra o saldo!
-- Pode ser no ecrã para não gastar papel?
-- Pode!
Não tinha muito dinheiro. Não chegava sequer ao limite de levantamento diário por pessoa. Com ela sabia que também não iam longe. Seria toda uma acção praticamente em vão para os agressores, já que eram os rotos a roubar os mal remendados.
Dirigiram-se ao carro, de onde saíram, por sua vez, Inês e o temível, que mantinha a arma branca na mão, como lembrança de ameaça constante. O procedimento foi o mesmo, embora com maior lucro.
No carro, Mafalda tentava ocupar o silêncio que congelaria todos os seus músculos de temor conversando com o seu novo “parceiro de viagem”.
-- Tem um sotaque diferente, é estrangeiro não é?
-- Não, não sou daqui. Nasci aqui.
Estava a mentir, com todos os dentes que tinha, mas Mafalda não quis continuar. Seguiu a via da simpatia, quase jocosa, da qual já tinha um diploma de estudos avançados.
-- Olhe, então tem aí o meu telemóvel, que está estragado, mas ele custa 30 euros a arranjar na Nokia, que é já ali, com o dinheiro que lhe dei pode ir lá e ainda fica com o resto.
Incrédulo com a afirmação, o “companheiro” nem respondeu. Entretanto, chegaram Inês e o outro. Seguiram viagem, desta vez até ao local onde eles tinham entrado no carro. Sabiam então que provavelmente estaria para terminar essa jornada, curta em tempo real, mas longa para Inês e Mafalda.
-- Já agora, se não se importarem, ponham os cintos. Não vá a polícia apanhar-nos e somos todos multados.
Os dois obedeceram de imediato ao pedido. Inês sorriu perante o à vontade da amiga, que encontrava ainda formas de tornar a situação o mais normal possível. As duas continuaram a conversa, como se ninguém estivesse atrás, sobre trivialidades da chuva e do vento, até chegarem ao ponto exigido. Pararam. Antes de saírem do carro, o mais feroz ainda disse, meio entre dentes:
-- Agora sigam, não olhem para trás, e, se forem à polícia, nós sabemos onde ela mora.
“Ela”, a Inês, que ficou assustada com tal ameaça, cuja memória iria minar muitos dos seus regressos a casa do trabalho, do shopping, de qualquer destino, a partir daquele momento.
Assim que retomaram o caminho, agora sozinhas, um alívio enorme as fez rir à gargalhada do sucedido, enquanto Inês ia revelando as coisas escondidas no banco. Não sabiam o que fazer, se contavam ou não à polícia. Pararam na Praça principal da cidade, repleta de gente naquela noite primaveril, de saídas em grupo, confiantes de conseguirem telefonar a algum amigo que as ajudasse a pensar o caminho a seguir.
Mafalda sabia apenas um número de cor, um antigo amor, peculiar no seu trato, como a resposta iria mais uma vez comprovar, ao ser-lhe solicitada a presença na praça, uma vez que tinham sido vítimas de um assalto:
-- Oh Mas acabei de pedir a minha tosta mista, quando terminar vou aí ter.
Situação caricata. Muitos outros amigos teriam ido a correr, elas próprias esqueceriam tostas, lagostas, ou qualquer outro pitéu se tal sucedesse a alguém que prezassem. Mas ele era assim, ela conhecia-o demasiado bem para achar estranho ou mal-intencionado.
Quando chegou, com um amigo comum, elas explicaram a situação, e depois de muito ponderarem , decidiram ir à esquadra da PSP, questionar se deveriam ou não apresentar queixa. Pela primeira vez naquela noite, uma sensação de verdadeiro medo invadiu-as de rompante, não queriam estar ali, mas sabiam que tinha de ser .
Expuseram, calmamente, e sempre rodeadas de piadas e risos pela improbabilidade da situação, naquela cidade, naquele dia, a elas, o sucedido ao agente que, admirado com a leveza delas afirmou peremptoriamente:
-- Meninas, isso foi sequestro, é crime de ordem pública. Mesmo que não queiram terei de reportá-lo à Polícia Judiciária. Querem avançar vocês com a queixa?
Num acto de coragem assinaram a papelada já passava das 4 da manhã. No dia seguinte seriam contactadas pela PJ, que lembrariam sempre como os verdadeiros CSI.

(cont.)

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2009/06/09

Ficção? II

Durante uns minutos, os primeiros, o máximo que puderam tentar perceber foi o grau de agressividade dos companheiros que, atrás, mantinham sempre um ar muito frio e agressivo. Mas não ambos da mesma forma. Apenas um ia falando e verbalizando essa violência, não pelas palavras, mas pelo tom que usava, como se fazer aquilo fosse prato normal do seu dia.
-- Ok, faremos o que quer, só não nos façam mal.
-- Não faremos, não se preocupem.
Era o mais alto, menos temeroso de mostrar totalmente a sua cara, enquanto a do outro estaria durante todo o tempo meia escondida pela pala do boné, que usava como máscara de tão para baixo que a colocava. Do retrovisor, Mafalda via apenas aquele que logo identificaram como, provavelmente, o mentor daquela situação, com um olhar decidido, e umas sobrancelhas que arqueavam perfeitamente como um vilão de filme, daqueles dos quais se sai da sala de cinema a temer a própria sombra.
Inês e Mafalda perceberam que a única forma de lidarem bem com a situação seria aquela que melhor sabiam, de dentro da sua força e cumplicidade, interagirem de uma forma simpática, sempre sorridente, quiçá escondendo o seu próprio pânico, ou procurando despoletar nos dois invasores alguma simpatia lá no fundo, para um final feliz. Mafalda seguia as ordens enquanto falava sobre trivialidades, permitindo a Inês, com o ruído que provocava, esconder os Ipods e o único telemóvel que tinha a certeza que não iria tocar por debaixo do banco, numa gavetinha quase invisível, para qualquer objecto menor ou documento. De tão discreta que foi, nem Mafalda percebeu bem as movimentações da amiga, ao lado, continuando em direcção a um dos locais mais escuros da cidade, onde foram mandadas parar.
-- Passem todo o dinheiro e telemóveis!
A ordem era clara, e foi cumprida com rapidez. Logo, as duas deram os telemóveis e abriram prontamente as carteiras para esvaziar todo o seu conteúdo que, para recém-licenciadas, no primeiro emprego, nunca seria muito. Mas era delas!
Passados uns segundos de hesitação uma delas ousa pedir os chips dos telefones, sem os quais perderiam todos os contactos com amigos, que moravam já noutras cidades, noutros países, com os quais não estariam facilmente para os reaver.
-- Com certeza!
A frase mais proferida por ambos, que autorizaram o pedido e logo tiraram o cartão, que devolveram sem resistência. Vendo o mais discreto, e ouso, mais pacato, em dificuldades para retirar o seu, Inês prontamente diz, a sorrir:
-- Ele tem uma manha para abrir a tampa, eu ensino como é.
E ajudou-o a conhecer o objecto que era, pela última vez, seu. Anéis e colares, que também pediam, não tinham nenhum de valor, apenas aqueles que podiam comprar nas lojas de acessórios, para complementar qualquer roupa que usassem. Menos mau.
-- Agora saiam do carro!
Disse, a medo, o boné falante, revelando a intenção primária de ficarem efectivamente com o carro, se não de algo pior. Naquela zona, nunca se sabe.
-- Não! Vamos apenas ao multibanco!
Retorquiu imediatamente, para espanto de ambas, o de ar mais pesado, o de semblante de criminoso nato.
-- Ok, e para onde querem ir?
Mafalda não sabia para onde conduzir. Multibancos havia muitos, e ela temia qualquer passo em falso.
-- Bairro do Pinote!
Um dos bairros mais temidos daquela região, nos quais, mesmo os autóctones se esquivavam de passar à noite, para não serem apanhados em tiroteios ou querelas alheias. Sem hesitar, e sem saber muito bem de onde, já que Mafalda sabia que para aí não podiam ir, tentou:
-- Bairro do Pinote?! Isso é muito longe! Há multibancos mais perto daqui, ali ao lado há vários.
“Ali ao lado” era uma zona comercial, muito iluminada, onde os carros passavam continuamente. Sentir-se-iam aí muito mais seguras do que no Bairro pedido. Havendo naquela zona três agências bancárias, pensou que as câmaras de vigilância as poderiam ajudar, quiçá, mais tarde. Estacionaram.

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2009/06/03

Ficção? I

Uma e vinte da manha naquela cidade pacata que, na Primavera, se cobria de um manto creme, fofinho, maldição para todos aqueles que sofriam de problemas respiratórios. Naquela noite, Mafalda e Inês acabaram o expediente tardíssimo, depois de arrumarem todos os objectos preciosos que mantinham em exposição na Praça Principal, local anual para a Feira Internacional de Lãs e Artesanato de Bardalajeira da Serra. Decidiram, para terminar o dia em beleza, beber um batido no café mais próximo, e reconhecido pelos seus gelados cremosos e sabores únicos, coisa que fizeram com grande prazer, sem saber que, durante muito anos, não voltariam a beber um igual. No ar divertido que sempre tinham as duas, Mafalda brincou com a amiga, que encontrara, dentro da sua mala, o telemóvel da associação onde trabalhavam, “trouxeste o telefone , vamos ser assaltadas”, e riram, como se naquela cidade tal fosse possível. Tudo corria bem naquela noite. O dia seguinte seria mais uma jornada de trabalho, quando o sol começa a aquecer lá fora, e as mentes dão azo a divagações coloridas, pelos sonhos daquilo que se espera ter, sempre, na primavera.
Uma da manhã, pagam e rumam para o carro. Mafalda conduziria, já que Inês adiava a responsabilidade acrescida, para ela e para o próximo, de ter um carro nas mãos. No caminho, uma patrulha da polícia seguiu-as durante um pedaço do trajecto que tão bem conheciam.
--Detesto ter carros de polícia atrás de mim, parece sempre que há algo de mau, de errado.
Mafalda desabafou, com um suspiro de alívio quando perderam o carro branco e azul de vista. Vinte minutos e Inês estaria pronta a sair do carro, depois de uns minutos de conversa, certamente sobre assuntos de injustiça no trabalho ou desarranjos amorosos, típicos na vida de Mafalda, interessada apenas por tipos danificados, com problemas de relacionamento, e problemas consigo próprios. Mais uma vez, riram com a cegueira de muitos, estupidez de outros, e até as suas próprias falhas no reconhecimento de muitos sintomas… afinal, à terceira só cai quem é burro. Com um pé de fora, à frente do prédio, eis senão que uma voz vinda de algures sem que se tivessem apercebido muito bem, surge do nada:
-- Entra, sem barulho!
Empunhava um objecto ameaçador na mão, enquanto agarrava Inês pelo braço, para que a única possibilidade fosse mesmo o regresso ao carro, onde entretanto já entrara o companheiro no crime, no banco de trás.
-- Não façam nada, não digam nada, segue!
Sem saberem o que se passaria a partir daí, naqueles primeiros minutos em que tudo o que viam pelos espelhos eram umas caras desconhecidas, com ar perigoso, tudo lhes passou pela cabeça. Inês lembrou a frase da amiga, temendo que o pior lhe sucedesse naquela noite. Mafalda cumpria as ordens do que, na diagonal, a obrigava a seguir determinado caminho, tal qual instrutor durante as aulas de condução, mas sem o charme e atenção que o dela tinha tido. Em segundos estavam na direcção do desconhecido, com o destino nas mãos daquelas figuras que atrás, na penumbra da noite misturada com as cores artificiais, e dentro das suas roupas largas e chapéus enfiados na cabeça, pareciam tiradas dos filmes que, normalmente “so acontecem aos outros”.

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