2008/10/15

Conexão Edimburgo-NY II

Naquele quarto na zona oeste, pertinho do edifício espelhado das Nações Unidas, enquanto abria a mala de uma recém chegada a uma cidade misteriosa, ela recorda todos os passos que a levaram até lá. Olha para a paisagem totalmente diferente daquela a que estava habituada no seu país à beira mar plantado, e, na sua mente, frames das escolhas que fez vão passando à sua frente. A viagem tinha sido calma, o grande desafio de uma vida naquele mundo ainda não tinha mostrado toda a sua força, e a anestesia ainda de tudo o que estava para trás tornava-a um ser mais resistente do que talvez seria. Ao retirar as roupas, uma a uma, para o pequeno armário, já antigo, mas suficiente para o início de uma nova aventura, deparou-se com a fotografia que mais gostava daquele que tinha ficado do outro lado do oceano - uma, a caminho da universidade escocesa, onde passou seis meses inesquecíveis, que uma amiga lhes tirara por trás, num dia em que tudo neles conjugava, desde as cores que vestiam, ao pequeno toque de mãos enquanto caminhava, já que ambos nunca tinham sido pessoas de grandes demonstrações públicas de carinho. Aquele quadro, muito bem desenhado, reflectia a calma das caminhadas da dupla, fosse nas voltas pela cidade, ou pelas viagens que fizeram juntos, numa simbiose perfeita.
Antes de viajar, pensara muito nas consequências que esse passo traria àquela relação, e à sua vida. Esteve ainda bastantes meses no seu regresso a casa parada, a reflectir, à espera, que Edimburgo fosse mais perto, ou que o tempo acelerasse o reencontro, desejos impossíveis de realizar e ela sabia-o. Muitos haviam sido os dias em que passava à frente do computador, sozinha, sem saber se era melhor responder ou cortar o cordão que os unia. Também não queria ser ela a desistir dos sonhos que construíram juntos, e que um passado mal resolvido e uma culpa imponente minavam diariamente. Acima de tudo ela reconhecia que mais do que os quilómetros que os separavam, tinham vidas bastante diferentes, que os afastavam tanto quanto os aproximavam, e isso era o mais difícil de gerir. Sabia que muitas vivências que teria seriam melhores se partilhadas com ele. Aliás, a partilha e comunicação tão característicos deles eram algo que ela adorava, especialmente nas manhãs em que se cumprimentavam e contavam os sonhos alucinantes que ambos tinham tido, desde os jogos de futebol perdidos às lutas pela sobrevivência em castelos escuros e sangrentos, invadidos pelas hordas de monstros mágicos que viam nos filmes ao domingo à tarde, ou liam nos livros de génios da criatividade. Como se compreendiam… soltado num suspiro imenso, enquanto arruma a foto numa das gavetas da mesa-de-cabeceira daquele quarto demasiado branco, que teria de decorar com as cores fortes, das quais precisava para acordar com força todos os dias. A separação não foi fácil, e sabia que ele estava com outra pessoa, numa escolha mais difícil do que a sua, num risco capaz de perder tudo o que tinha de mais bonito. Mas a decisão estava tomada e era do futuro o timing certo que os esperava, ou não.
Retirou da mala um a um os vestidos que a faziam sentir feminina. Tinha dentro de si demasiadas personagens, que se completavam, e coexistiam agora numa paz que transparecia a todos que a conheciam. Era ora feminina e bastante sensual, ou punha uns ténis e deixava dominar a criança brincalhona e alegre que sempre havia sido. Na maior parte dos dias conseguia conciliar ambos, forçando a aparecer o sorriso que ameaçava desistir nos dias mais escuros, cobertos por uma densa nuvem negra, visível apenas aos olhos dos mais atentos. Com ele sempre conseguiu libertar todas as personagens que habitavam dentro dela, e sentia no olhar dele um agradecimento eterno, por ser como é.
Com o quarto parcialmente arrumado, com aquele toque que a mãe dizia que dava a todos os seus espaços, decidiu sair à rua, e conhecer a cidade que nunca dorme. Precisava de Nova Iorque mais do que no emprego precisavam dela. Ao contrário da maioria das pessoas, quanto mais rodeada de gente precisasse de estar, mais significativa era a solidão que sentia, sabendo que a paz, essa, encontrava-a nos momentos em que estar sozinha, sem fantasmas do passado, era uma delícia passada sem dar conta, naqueles 25 anos que já pesavam nas rugas dos olhos dos risos dados, das mil e uma expressões que tinha, das ansiedades que por vezes eram mais que muitas.
Desceu as escadas em madeira daquele prédio que se assemelhava àqueles que via nos filmes e nas séries da Big Apple. Era Janeiro, estava um frio tenebroso, e ele não estava lá para aquecer as mãos inevitavelmente geladas. Ia conhecer o edifício onde iria trabalhar no próximo ano… Que rumo teria a sua vida, a partir daquele dia?

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2 Olhares:

Anonymous Anónimo :

...o 1º olhar de muitos ;)
gostei do teu cantinho.
a tua fantasia no aniversário estava mt bonita ;)

beijinho ;)

03:34  
Blogger Margarida :

Seja muito bem-vindo, caro companheiro de dança. :)

Espero que goste. :P

Beijinho

M.

11:22  

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