Encostada à porta entreaberta, via o vulto que de si se afastava com um ar de quem vai para outro planeta, e que se demora a regressar. Era a segunda vez que ele saia assim, bem aprumado, chapéu na cabeça e pasta na mão, como se fosse buscar fios de alma num mundo no qual ela não podia entrar. Ele não queria. Olhava-o silenciosamente, com a acomodação de quem se habituou a estar ali, no jardim onde aparava os restos dele que ficavam por cumprir nesse tal mundo, a vê-lo partir, sem o acompanhar. Era um local dele, onde ela não existia, onde se perdia o peso do que sentiam e viviam no jardim, de onde ela não saía. Tudo na vida dele era assim compartimentado. Com uma organização fora do comum, planeava tudo – o que dizia,o que vivia, o que sentia – ao mais pequeno pormenor, como se só assim mantivesse a estabilidade do barco que tentava manobrar. E ai de quem lhe mexesse nos papéis! E nas palavras? Nem se fala! Cada uma tinham o seu espaço, o seu contexto, e não se poderiam proferir noutro, sob pena de misturar os locais que pisava e baralhar a vida que ele queria. Não! Nada se poderia intersectar. Palavra-sentimento-local, bem divididos, para que jamais alguém fosse preciso como outrora ele havia precisado, e lhe fugisse novamente com todas as palavras, deixando-o vazio.
Ficou a observar o ponto que ia definhando ao longe, com a ajuda do sol que dificultava a contemplação do horizonte. Estagnada, com uma calma que transparecia dela, mesmo nos dias em que fervia por dentro e precisava que sons de água lhe acalmassem o espírito, permaneceu no alpendre por longos minutos, a inspirar o ar que, de tão seco e quente, custava a entrar, ardendo-lhe a garganta e os pulmões. Só lhe arrefecia o coração, e ninguém o sentia. Nem mesmo ele que, por sinal, já nem se via. De repente, lágrimas começaram a desafiar o vento árido daquele país, humedecendo-lhe a cara e as forças, que estavam perdidas pelo calor. Cuidara sempre dele, tratara-lhe as feridas e afastara-o dos fantasmas de dias em que o mundo não havia sido suficientemente dele. Tratara-o como a outra asa, o par perfeito, elo fechado que ninguém poderia quebrar. Mas ele quebrava-o, vezes sem conta. Mais do que ela conseguira aguentar, mesmo desculpando-o e relativizando o que ele fazia com todas as situações que o punham para baixo. E ele partia, e ele esquecia, e ela ficava. Sempre.
Lentamente, fechou a porta nas suas costas. Fixou um ponto à sua frente, mesmo desconhecido, e partiu. Algures à frente encontraria alguém que fosse também dela, e que não a escondesse por ermos inalcançáveis. Algures à frente entraria quiça, sem dar conta, no mundo dele outra vez.
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