Enquanto descia as escadas de madeira do prédio onde era recém-chegada, com a rapidez do stress da pontualidade lusitana, e cumprimentava o porteiro que, cuidadosamente, lhe abria a porta, imagens do que estava para vir e do que foi voltaram, como invasores que ninguém quer, e não se está à espera. À frente do prédio, para a rua, dez degraus tornavam-se agora a ponte para um novo caminho, um postal em branco, o melhor para aqueles que, como ela, pensavam no futuro, mas que, no presente, era muito difícil de aceitar. No topo das escadas, ao ouvir a porta fechar-se atrás dela, algo a deteve, e estagnou. Nem toda a euforia do momento a tinha imunizado da decisão de se separar do lado que alimentava nela os sonhos, e cuidava dos sorrisos enquanto dormia, do seu coração. “Todos os primeiros passos são assim…”, pensava, com a certeza de quem se tenta convencer a si mesmo, mais do que todos os outros, em longas conversas sobre coragem e desafios destemidos, lutas e vitórias sobre dragões ferozes. Sentiu agora a sua força como uma música que passava muito na rádio antes de voar, “I’m strong on the surface, not all the way through”, que trauteava enquanto, como criança envergonhada de sair da sua rede de segurança, acariciava o corrimão, sem descer. Os primeiros passos são assim, difíceis, determinantes, arriscados, mas, normalmente, trazem em si uma alegria única, de quem, finalmente, aprende a andar. Dez degraus era o que lhe faltava passar para tal, mas eles afiguravam-se agora maiores do que o próprio medo que enublava a sua mente, os seus olhos, paralisando os movimentos e a confiança. Lembra-se do primeiro passo dado para uma escola desconhecida, para uma faculdade fria, para tango argentino acabrunhadamente dançado, para uma primeira noite sem se tocarem, para uma queda de água sem temor, ou para um porta-bagagens cheio de memórias que teve de ser esvaziado. Todos, cada um com o seu grau de dificuldade, haviam sido vencidos, revelando pequenas delícias que ela reconhecia tão bem, nos acasos que se mostravam diariamente, e que apenas uma palavra teria mantido, palavra essa que nunca chegou a ouvir, e nunca disse, perdendo a coragem de arriscar na única tentativa que efectivamente queria. Nem os ensinamentos do Master Yoda, “try not, do”, nas horas em que, pequena, se julgava Jedi, a tinham ajudado a desbloquear o caminho, enublado pela única força que ela se recusava a combater, a única que poderia salvar ou impedir o rumo que já os deuses haviam escrito…
Naquele momento ninguém a reconheceria, também, ainda ninguém a conhecia ali naquele mundo tão diferente do seu, para notar a diferença de um bambu a vergar de ansiedade e peso da parte incompleta daquele ser. “Is everything ok, Miss?”, espreita o porteiro, único espectador da agonia dela, face à incapacidade de descer ao passeio, à rua, à nova cidade. “Yes, thank you”, ela mentia com todos os sorrisos que tinha, afinal, nem era ali que ela queria mesmo estar, e só agora se tinha apercebido, respirando o ar que a debilitava, mesmo sem a humidade, outrora razão de noites de respiração difícil, mas que ela desejara, sem se aperceber. Como seria tentar ficar na cidade mais mística que conhecia? Sentou-se a meio, para retemperar as energias que a tinham levado até ali, fossem as correctas, de vontade pessoal e ambição benéfica, ou incorrectas, nas entrelinham das palavras que não se disseram, e que nunca tinham deixado o tempo fluir. Quem diria, ao retirar as coisas da mala, há vinte minutos atrás, que questionaria tudo, e ponderaria voltar atrás, e arriscar não separar o que sentia do que queria?! Nas reflexões dos momentos antes de vir já sabia que, fosse qual fosse a decisão, sem Edimburgo, ficaria sempre dividida, como a personagem do Barco Negro, pela voz inconfundível de Mariza, mas só naquele momento ouvia realmente as velhas loucas da praia a atazaná-la, e a puxar veementemente para o lado escuro da realidade. Mas esse nunca seria o seu lado, eles eram feitos de luz, e essa, é indestrutível. E assim, decidia, observando-se, sem se mexer…
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