2009/07/12

Truques de Morpheu

A média luz de um pôr do sol de Verão entrava pela janela, alta e imponente, iluminando a secretária de pinho escuro, cuidadosamente trabalhada, com motivos florais em baixo relevo. Tudo naquela sala ganhava naquele instante um ar vivo… até o pó que, com aquele raio quase celestial se tornava perceptível ao olho humano, sem grande esforço. A divisão não era muito grande, das mais pequenas aliás, naquela mansão de quinta de vários hectares, de pedra escura e amplas portas de madeira maciça, que se erguia majestosamente na grande clareira no meio de hortas, jardins, e velhas faias, túmulos de grandes segredos.
De vestido beige, com leves detalhes bordados a uma seda fina, de um burgundy brilhante e muito rico, uma figura permanecia, no centro da sala, como se um raio a tivesse aí imobilizado, e a levado para outro mundo sem se dar conta. Uns papéis meio riscados, uma pena e um tinteiro meio gasto, completados por uma pilha de livros caídos no chão, repletos de histórias que não havia vivido, e pelas quais também se perdia, mostravam quão ligada era à fantasia de quem escreve, e é pela escrita inebriado. Reclinada na grande poltrona virada para a janela, ela lia a última carta recebida, daquele pelo qual o seu corpo reagia; o coração batia mais forte, o estômago apertava sem fome alguma, os olhos enublavam de emoção. “Quero ficar contigo por quanto os Senhores do Tempo nos deixarem, dar-te a mão num sorriso aberto, sem nada dizer, que, palavras, já as gastamos no presente, quando os corpos estão ausentes, e restam apenas elas para nos unir”. Ele não era o mais romântico dos homens, nem o mais eloquente nos devaneios de paixão e amor, que ela observava nos casais que a rodeavam, muitos deles tão verdadeiros como um dia de calor no Natal gelado daquela região. Mas tinha coragem, vontade e um ímpeto de percorrer os trilhos que avista como seus, independentemente dos percalços que à frente pudessem surgir. E ela gostava de aventura… como gostava! Num mundo em que o toque era condenado, e as mulheres um adorno que se comprava para certos fins dentro de uma casa, ele olhava através dela, vindo ao seu auxílio sempre que ela o procurava, de saudades, ou de sufoco, quando o espartilho não lhe apertava apenas a cintura, que era já muito fina, mas também a alma, essa, da imensidão do universo que se desconhece.
E ele vinha, sem se esquecer por instantes de que a par de um grande amor, também a cumplicidade, a amizade, e a lealdade construíam um futuro luminoso. O primeiro, sem estas, nada seria. Cuidavam um do outro, assim, como quem nunca se esquece de uma planta que tem de regar, dizendo-lhe nas horas certas, quando era necessário, aquilo que precisavam ouvir, e que o coração não mentia. Ele sabia que, se negligenciasse um momento, perderia aquela que fazia já parte dele, sem se aperceber, de tão entrelaçadas que estavam as suas mentes, e as suas raízes. E ao mesmo tempo eram livres, especialmente de grilhões impostos pela sociedade que não reconheciam como ditadora dos seus destinos, olhando para o horizonte como uma meta, não uma fatalidade.
Na languidez de um estar parado a pensar um sentimento, naquele fim de tarde, um barulho estridente acorda o ser singelo de carta na mão. Abriu os olhos assustada, como que invadida por uma força de um filme que esvazia a memória, e observou a luz matinal que tentava banhá-la de realidade. Eram sete, e o despertador lembrava-a que tinha uma rotina a cumprir. Os móveis comprados nos grandes armazéns de mobiliário, que uniformizam lares, todos semelhantes, sem o toque humano de uma mão incapaz de fazer dois objectos iguais, não tinham a imponência da sala sonhada. O lado direito da cama permanecia vazio, lembrando que nem todos tinham coragem e paciência para tentar percorrer o tempo com a calma de um sacerdote hindu, como fazia aquele que tinha deixado no mundo dos sonhos. Nem a humildade de um “sei viver sem ti, mas não quero”, quando tal for sentido, mesmo que o sentimento seja uma chama que, apesar de não nos deixar, nem sempre se mostra com a mesma força, ou intensidade, o que nos levaria ao desgaste fatal ou apatia total.
Suspirou, tornou-se mortal por mais um dia, enquanto o sol não se põe, e, com o peso da vida mesquinha daquele país nos seus ombros, levantou-se para mais um dia de trabalho…

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6 Olhares:

Blogger Estrelinha :

Lindo. No amor não existem utopias ou sonhos. Existem forças e desejos. Bjnhos com saudades

15:48  
Blogger Unknown :

Este comentário foi removido pelo autor.

02:06  
Blogger Bruno S :

Parece uma história que conheço.

02:12  
Blogger Margarida :

Crise de identidade sr Stern? :P

Conheces? Hás-de me contá-la um dia, entao. :D

Bjo

Estrelinha: No amor não existe preto e branco... e isso complexifica td. :) Mtas saudades. :D

10:03  
Blogger Bruno S :

Crise de compartilhamento de PC mesmo...

12:50  
Blogger Margarida :

ah, fico mais descansada entao... :):)

13:08  

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