Sussurros na Noite
Todas nós vemos o rosto a ficar mais pesado, a pele a secar, os sulcos da idade mais carregados e o cabelo a cair, cada vez mais, como um grande Outono da vida. Todas sentimos a perda da elasticidade dos risos que outrora demos, das mãos que vão ficando brancas, das pernas que suportaram todo um percurso. Mas poucas são as que, no final do dia, ao descalçar o chinelo, que aquece o pé cansado do caminho a casa, respondem com satisfação à eterna questão “Será que fiz tudo?”.
Durante a vida, as opções são muitas. Às vezes tomamos o rumo correcto, noutras criamos um caos imenso, que nos sufoca diariamente. Aí sentimos que tudo perdeu a lógica, a coerência e importância do plano que rabiscámos numa mesa de café aos dezasseis. Quer pensemos numa vida a dois ou mais solitária, quer queiramos ser doutores ou aproveitar os dias na inércia amorfa, naquela altura tudo parece claro e intocável, como se ganhasse uma imunidade que nenhuma força terrestre pode abalar. Traçamos projectos, definimos princípios que juramos nunca violar, julgamo-nos deuses, criadores do magnífico, capazes de mudar o Mundo, temos asas poderosas que nos tornam imortais. Mas, naquele momento, ao descalçar o chinelo, o cansaço vence e esquecemos que já fomos rainhas, reis e deuses.
Olhamos à volta e vemos que, afinal, pouco foi o que mudámos; que o Mundo continua o seu curso, como um rio, que corre imperturbável por quantas pedras atiremos. A perna, que toda uma vida nos atormentou, estala... Acordamos para a realidade, essa foi a grande constante na nossa existência. Viramo-nos para o lado, na esperança que a dor que atacou o membro assombrado desapareça. Ao nosso lado os lençóis balanceiam-se num contínuo agradável; perdeu cabelo, ganhou uns quilos, mas mantém o mesmo ar, a mesma calma e tranquilidade quando vencido pelo sono. A dor parou, voltamos a divagar. A vida é como uma montanha russa, daquelas mais excitantes, tem altos, baixos, rectas, curvas e zonas que nos refrescam. Aproveitá-la-emos se mantivermos os olhos abertos, sentindo a ansiedade, a felicidade, o medo e a paixão forte, no prazer de saborear cada passo. “Terei feito tudo?”… A questão controla o universo, como se nesse instante a própria vida dependesse dessa resposta. Não queremos no entanto saber se fizemos “tudo”, mas se o “tudo” que fizemos foi o que nos tornou efectivamente o mais felizes possível. Viramo-nos mais uma vez. A idade já não perdoa os ossos e a hérnia acabou de nos relembrar da sua presença. Não foi convidada, mas fez questão de se juntar à perna maldita no nosso longo caminhar. Fechamos os olhos, relembramos à força o rabisco na mesa aos dezasseis, quando o nosso prazer estava em ouvir The Doors ao entrar pela noite, perdidos na magia das estrelas. Que princípios e ideais pelos quais nos batíamos? Que queríamos ser? Olhamos de relance a face serena ao nosso lado e pensamos: “Sim, aqui não me enganei…”. Fechamos os olhos novamente. “Mas como teria sido com os outros?”. Várias faces nos vêm à memória; João, o primeiro amor… “Como era mesmo?”. Não nos lembramos bem, nem sabemos mais a cor dos olhos dele, foi há muitos anos, cinquenta, pelo menos. Tiago, o amor dos dezasseis, o que ficou connosco para sempre na mesa do Mandarim, com quem partilhámos tudo pela primeira vez. Coramos. Aí a memória não nos falha, nem do sinal microscópico que tinha junto à sobrancelha, mais visível quanto mais irritado estava. Era rebelde, tinha sempre um casaco de cabedal com epítetos estranhos e o cabelo muito puxado para trás, era o terror dos pais. Tinha um perfume inconfundível, que se entranhava na pele e acompanhava para todo o lado. Inspiramos profundamente e… aah, quase sentimos o cheiro, como se nunca nos tivesse deixado. “Que será feito dele?” A última vez que ouvimos falar dele foi há tantos anos que nem nos lembrávamos já. Estava em Nova Iorque, a fazer o quê? Nunca soubemos. “Não estaria melhor com nenhum dos dois”, temos por momentos a certeza, barrando de imediato a entrada aos fantasmas da nostalgia. Tocamos levemente a mão daquele que sempre esteve ao nosso lado. “Está fria. Deixa-me aquecê-la”, pensamos, como se se tratasse de um assunto vital. Terminada a tarefa, aconchegamo-nos nos lençóis polares, fiéis amigos nas noites mais frias. Escutamos os barulhos da rua, em plena zona citadina, à espera do tal João Pestana, com quem tínhamos grandes aventuras quando ainda nem sabíamos ler.
As fotos dos netos estão cuidadosamente colocadas na mesa-de-cabeceira. Olhamos para eles; um casal, do primeiro casamento da nossa filha, que desesperadamente gostaríamos de ver acompanhada “com alguém que cuide dela quando desaparecer”, desabafamos, inquietas, com a almofada. Não a queremos ver sofrer, nunca quisemos, mas a vida às vezes é tão penosa… “e ela sabe-o tão bem…”.
Apodera-se de nós um longo suspiro. Tão forte que quase acordamos os fantasmas da casa inteira. “Já fomos muitos, agora somos só dois e, um dia, apenas um…”. Sentimos o sono a chegar, quase abruptamente, para nos levar junto de Morpheu, onde ainda somos jovens e temos novamente tudo a percorrer. Sem dar conta, adormecemos.
Durante a vida, as opções são muitas. Às vezes tomamos o rumo correcto, noutras criamos um caos imenso, que nos sufoca diariamente. Aí sentimos que tudo perdeu a lógica, a coerência e importância do plano que rabiscámos numa mesa de café aos dezasseis. Quer pensemos numa vida a dois ou mais solitária, quer queiramos ser doutores ou aproveitar os dias na inércia amorfa, naquela altura tudo parece claro e intocável, como se ganhasse uma imunidade que nenhuma força terrestre pode abalar. Traçamos projectos, definimos princípios que juramos nunca violar, julgamo-nos deuses, criadores do magnífico, capazes de mudar o Mundo, temos asas poderosas que nos tornam imortais. Mas, naquele momento, ao descalçar o chinelo, o cansaço vence e esquecemos que já fomos rainhas, reis e deuses.
Olhamos à volta e vemos que, afinal, pouco foi o que mudámos; que o Mundo continua o seu curso, como um rio, que corre imperturbável por quantas pedras atiremos. A perna, que toda uma vida nos atormentou, estala... Acordamos para a realidade, essa foi a grande constante na nossa existência. Viramo-nos para o lado, na esperança que a dor que atacou o membro assombrado desapareça. Ao nosso lado os lençóis balanceiam-se num contínuo agradável; perdeu cabelo, ganhou uns quilos, mas mantém o mesmo ar, a mesma calma e tranquilidade quando vencido pelo sono. A dor parou, voltamos a divagar. A vida é como uma montanha russa, daquelas mais excitantes, tem altos, baixos, rectas, curvas e zonas que nos refrescam. Aproveitá-la-emos se mantivermos os olhos abertos, sentindo a ansiedade, a felicidade, o medo e a paixão forte, no prazer de saborear cada passo. “Terei feito tudo?”… A questão controla o universo, como se nesse instante a própria vida dependesse dessa resposta. Não queremos no entanto saber se fizemos “tudo”, mas se o “tudo” que fizemos foi o que nos tornou efectivamente o mais felizes possível. Viramo-nos mais uma vez. A idade já não perdoa os ossos e a hérnia acabou de nos relembrar da sua presença. Não foi convidada, mas fez questão de se juntar à perna maldita no nosso longo caminhar. Fechamos os olhos, relembramos à força o rabisco na mesa aos dezasseis, quando o nosso prazer estava em ouvir The Doors ao entrar pela noite, perdidos na magia das estrelas. Que princípios e ideais pelos quais nos batíamos? Que queríamos ser? Olhamos de relance a face serena ao nosso lado e pensamos: “Sim, aqui não me enganei…”. Fechamos os olhos novamente. “Mas como teria sido com os outros?”. Várias faces nos vêm à memória; João, o primeiro amor… “Como era mesmo?”. Não nos lembramos bem, nem sabemos mais a cor dos olhos dele, foi há muitos anos, cinquenta, pelo menos. Tiago, o amor dos dezasseis, o que ficou connosco para sempre na mesa do Mandarim, com quem partilhámos tudo pela primeira vez. Coramos. Aí a memória não nos falha, nem do sinal microscópico que tinha junto à sobrancelha, mais visível quanto mais irritado estava. Era rebelde, tinha sempre um casaco de cabedal com epítetos estranhos e o cabelo muito puxado para trás, era o terror dos pais. Tinha um perfume inconfundível, que se entranhava na pele e acompanhava para todo o lado. Inspiramos profundamente e… aah, quase sentimos o cheiro, como se nunca nos tivesse deixado. “Que será feito dele?” A última vez que ouvimos falar dele foi há tantos anos que nem nos lembrávamos já. Estava em Nova Iorque, a fazer o quê? Nunca soubemos. “Não estaria melhor com nenhum dos dois”, temos por momentos a certeza, barrando de imediato a entrada aos fantasmas da nostalgia. Tocamos levemente a mão daquele que sempre esteve ao nosso lado. “Está fria. Deixa-me aquecê-la”, pensamos, como se se tratasse de um assunto vital. Terminada a tarefa, aconchegamo-nos nos lençóis polares, fiéis amigos nas noites mais frias. Escutamos os barulhos da rua, em plena zona citadina, à espera do tal João Pestana, com quem tínhamos grandes aventuras quando ainda nem sabíamos ler.
As fotos dos netos estão cuidadosamente colocadas na mesa-de-cabeceira. Olhamos para eles; um casal, do primeiro casamento da nossa filha, que desesperadamente gostaríamos de ver acompanhada “com alguém que cuide dela quando desaparecer”, desabafamos, inquietas, com a almofada. Não a queremos ver sofrer, nunca quisemos, mas a vida às vezes é tão penosa… “e ela sabe-o tão bem…”.
Apodera-se de nós um longo suspiro. Tão forte que quase acordamos os fantasmas da casa inteira. “Já fomos muitos, agora somos só dois e, um dia, apenas um…”. Sentimos o sono a chegar, quase abruptamente, para nos levar junto de Morpheu, onde ainda somos jovens e temos novamente tudo a percorrer. Sem dar conta, adormecemos.
Etiquetas: Estórias Histórias Textos e Poesias
1 Olhares:
"será que fiz tudo?"na vida ?Quantos não se interrogam em cada dia que passa. Contudo, importante será perguntar se fizemos o melhor de nós, se em cada dia que passa cumprimos a nossa missão...
Assim ao adormecer, sentimos que valeu a pena todo o caminho que percorremos, com rectas, curvas, declives,..., mas certamente serenos e felizes.
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